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Entrevista a Margarida Queirós, coordenadora do projeto ViViDo

Entrevista a Margarida Queirós, coordenadora do projeto ViViDo

Margarida Queirós é geógrafa, professora associada do IGOT-ULisboa e investigadora do Centro de Estudos Geográficos, tendo como áreas de interesse o género, território, ambiente e planeamento e políticas públicas.

Foi Diretora da Finisterra entre 2016 e final de 2021 e é, atualmente, coordenadora do projeto ViViDo – Plataforma de Gestão da Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica (2020-2022), financiado pelos EEA Grants e coordenadora da Licenciatura em Planeamento e Gestão do Território do IGOT.

P1. O projeto ViViDo visa a criação de uma plataforma digital que possibilite um conhecimento dos recursos nacionais e locais no combate à violência contra as mulheres e violência doméstica. Pode explicar os seus objetivos e principais desafios?

O projeto ViViDo foi aprovado por decisão do Comité de Seleção, em 2 de abril de 2020, no âmbito da Open Call #4 do Programa Conciliação e Igualdade de Género (implementado pela CIG). É integralmente financiado pelo Mecanismo Financeiro do Espaço Económico Europeu 2014-2021, conhecido como EEA Grants.

A finalidade do projeto é a construção da Plataforma ViViDo, Plataforma Nacional de Gestão de Informação da Rede Nacional de Apoio à Vítima de Violência Doméstica (também conhecida por RNAVVD composta por Estruturas de Atendimento, Acolhimento de Emergência e Casas de Abrigo) para aquisição, armazenamento, organização e análise de dados no domínio da violência doméstica.

O principal resultado será, necessariamente, o de melhorar a proteção e a segurança das vítimas através da utilização deste instrumento que pressupõe a sistematização da informação recolhida sobre a(s) vítima(s) e o historial de vitimação, a padronização de registos, a simplificação da recolha e do tratamento de dados e a promoção (quando possível e necessário) da partilha de informação, de forma segura e adequada, evitando situações de vitimação secundária e institucional.

Se bem que com a intervenção centrada nas vítimas, esta plataforma irá auxiliar o trabalho em rede das estruturas da RNAVVD; facilitar a gestão de recursos (articulação entre serviços); agilizar o encaminhamento das vítimas (controle de vagas); obter e tratar dados estatísticos (informação agregada e anonimizada), permitindo assim melhorar a prestação e qualidade dos serviços e obter um conhecimento atualizado da realidade que permita orientar as políticas públicas do setor.

Podemos dizer que as atividades desenvolvidas no projeto ViViDo aprofundam conhecimento sobre o fenómeno da Violência Doméstica e Violência de Género (VDVG), no país e nos âmbitos local e regional, e promovem uma intervenção mais articulada, informada, atempada e eficaz das entidades da rede, garantindo uma partilha segura em consonância com o RGPD. Quando o projeto foi pensado e proposto, o contexto era bem diferente do atual, pois a “ficha única de atendimento” (Despacho n.º 5374/2020, de 11 de maio) de utilização obrigatória por todas as entidades na RNAVVD não existia e nem se supunha uma pandemia pelo meio.

Gostaria ainda de acrescentar que a conceção e desenvolvimento da Plataforma ViViDo pressupõe a corresponsabilização, partilha de práticas e de conhecimento multidisciplinar, otimização de meios e redes, e assenta em parcerias estratégicas de âmbito nacional e internacional, com o setor público/academia (IGOT-Universidade de Lisboa, NOVA FCSH), setor privado (AVINET, AMBISIG, CCR Legal) e sociedade civil organizada (RNAVVD). A plataforma desenvolvida no âmbito deste projeto será propriedade da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), enquanto coordenadora da RNAVVD e, como tal, tem tido um papel importante no acompanhamento dos trabalhos do projeto.

O projeto ViViDo tem ainda contribuído para reforçar as relações bilaterais Portugal-Noruega através da parceria estabelecida com uma empresa norueguesa da área da tecnologia digital (AVINET).

Por fim, gostaria de acrescentar que o projeto ainda desenvolve e apoia iniciativas que promovem a não discriminação, o respeito pela diversidade e a promoção da igualdade de género junto de um público generalizado e abrangente em termos demográficos e territoriais, através de atividades e eventos programados, de informações veiculadas pelo seu site e pelas suas redes sociais e de produtos de sensibilização destinados a públicos alargados, como um Webdocumentário (focado em narrativas reais de vítimas) e um Vídeo (centrado nas entidades da RNAVVD).

P2. Qual o impacto social esperado e como será feita essa avaliação?

O impacto social deste projeto pode ser refletido em termos da redução das disparidades económicas e sociais. A violência doméstica e a violência de género (VDVG), constitui uma violação dos direitos humanos, é um obstáculo à concretização da igualdade e, enquanto tal, tem elevados custos sociais (para além dos custos materiais/financeiros). A violência doméstica e de género infringe os direitos da pessoa humana e as suas liberdades fundamentais, impedindo o seu exercício, e atentando contra a integridade física, psíquica, e financeira da pessoa. Por conseguinte, a VDVG encerra desigualdades nas relações entre as pessoas e estas relações desiguais (de poder) têm impactos negativos no desenvolvimento socioeconómico. Travar as desigualdades implica políticas públicas eficazes no combate a este crime. A plataforma ViViDo permitirá alicerçar uma melhor prevenção da violência, a proteção das vítimas e a capacitação de profissionais da rede.

A VDVG, que constitui simultaneamente causa e consequência da desigualdade, é uma realidade preocupante em Portugal. No Código Penal português a criminalização da violência doméstica foi ampliando o conceito, ao nível dos contextos e das pessoas envolvidas (de vítimas e autores/as), assim como ao nível do agravamento das penas. Na atualidade, o benefício gerado pela Plataforma digital que o projeto ViViDo se encontra a desenvolver tem um impacto direto no funcionamento da RNAVVD e, por consequência, no grupo social vulnerável a que se destina, as pessoas vítimas de VDVG que a esta rede se dirigem.

Por conseguinte, a Plataforma ViViDo, contribui para melhorar a qualidade dos serviços prestados pelas várias entidades que integram a RNAVVD. Estas, no seu conjunto, empregam direta e indiretamente um amplo conjunto de profissionais de várias áreas, que beneficiarão deste instrumento, independentemente da dimensão ou localização territorial da estrutura de apoio a que pertencem. Em síntese, as/os profissionais das estruturas de atendimento vão dispor de um instrumento de apoio ao seu trabalho, tendo oportunidade de beneficiar da formação associada, aumentando as suas competências digitais.

Muito embora tenha a noção dos impactos limitados às causas estruturais das desigualdades, espera-se que a Plataforma digital possa ter efeitos significativos na melhoria da gestão dos recursos de apoio às vítimas e, por consequência, tenha impacto nos indicadores de desigualdade, de exclusão social e de saúde pública.

Também podemos entender o impacto deste projeto ao nível do fortalecimento das relações bilaterais. O relacionamento entre a equipa do ViViDo e o parceiro norueguês, a AVINET, tem sido benéfico pelas trocas de conhecimento e de experiências, no que respeita à segurança da plataforma no seu manuseamento futuro pelas entidades da rede. Sublinho ainda que esta relação que se materializa em reuniões de trabalho sobre a definição dos requisitos de segurança da plataforma ViViDo e na participação em eventos e de forma abrangente, tem permitido conhecer e beneficiar da cultura de trabalho e do profissionalismo de uma empresa privada global. A colaboração tende a centrar-se em questões relacionadas com a segurança, usabilidade, design e desenvolvimento da plataforma, componentes técnicas fundamentais da mesma.

A avaliação do sucesso do projeto será feita após o seu término, que se prevê ser ainda este ano de 2022, e com a entrada da plataforma em funcionamento.

P3. Foi Diretora da Finisterra – Revista Portuguesa de Geografia durante 6 anos. Que balanço faz do trabalho desenvolvido durante esse período?

Para mim, a tarefa da direção da Finisterra apresentou-se como uma herança de grande responsabilidade associada aos seus fundadores (Orlando Ribeiro, Ilídio do Amaral e Suzanne Daveau), e ainda à atual complexidade da internacionalização, à competição pela captação de produção científica num quadro crescente empresarializado e profissionalizado de editoras científicas.

Devo esclarecer que antes de assumir a direção da revista, fiz parte da Comissão Executiva da Finisterra – aprendendo e acompanhando a sua anterior Diretora, a Professora Maria João Alcoforado – atividade que me deixou precavida para a gestão do quotidiano da revista e para lidar com a pressão e velocidade das transformações que caracterizam o mundo editorial. Procurando manter a estabilidade e a experiência dos quinze anos anteriores no acompanhamento da sua evolução, abracei esta função, com o apoio da minha equipa editorial, e fui garantindo a transição e a manutenção da qualidade dos aspetos formais/extrínsecos e de conteúdo/intrínsecos, fundamentais ao trabalho editorial.

A longa história e prestígio internacional da Finisterra, implicavam que a revista continuasse a ser editada em “canal duplo”. Quando assumi a direção da revista tinha em mente garantir que a Finisterra continuasse a sua missão de divulgação científica através da edição impressa, porém de forma a não perder a sua visibilidade, tinha de garantir e expandir o processo de indexação através da sua edição eletrónica.

Por ter terminado muito recentemente o meu mandato, e porque a minha perspetiva é certamente enviesada, não é fácil fazer um balanço objetivo. Mas posso adiantar o seguinte, do ponto de vista pessoal foi deveras exigente, pois foi necessário “abrir novos caminhos” na gestão da revista, mas foi também uma experiência muito enriquecedora: aprendi bastante sobre o mundo editorial e fortaleci as minhas redes internacionais. Do ponto de vista da revista, foram alcançadas metas importantes: aumentamos a cadência de publicação (de dois para três números por ano); mantemos uma página web atualizada em três línguas com informações sobre indexação, ética, política editorial, avaliação de textos, etc.; continuamos a garantir a divulgação em acesso aberto e disponibilizamos um DOI por texto; inauguramos a modalidade “publicação avançada” de artigos (Ahead of Print); dinamizamos ações de formação focadas na investigação e produção científica; criamos o prémio anual de Melhor Artigo publicado na revista; e estamos conscientes de que a revista está hoje muito presente nas redes sociais. Por fim, gostava de destacar uma iniciativa que tem conhecido grande acolhimento: a Finisterra Annual Lecture, que se foi tornando um importante evento anual do CEG.

P4: Pode contar-nos um pouco sobre a sua trajetória pessoal e o que a levou a escolher a Geografia e Planeamento como área de estudo e profissão?

Escolhi a Geografia por múltiplas razões, mas distingo aqui a que considero mais pessoal: porque tinha uma grande admiração pela minha tia mais nova, Maria João Queirós (Roseira), que era docente na NOVA, muito próxima da Professora Raquel Soeiro de Brito, e também sua amiga pessoal. Hoje esta referência é conhecida por role model. Recordo que era eu ainda adolescente, levou-me ao Arquipélago da Madeira e, nessa viagem, tive o privilégio de conhecer o Porto Santo e de ter sido levada a visitar a ilha por ambas, num jipe. Representou, na altura, uma expedição reveladora de um mundo desconhecido.

E, a propósito, também me lembro das Finisterras alinhadas na estante da sala dela e de me transportarem para um imaginário de viagens (im)possíveis a mundos desconhecidos. Adorava o seu escritório, repleto livros e de objetos de outros povos e civilizações que recolhia através do trabalho de campo. Porque viajava muito, fazia fotografia e tinha sempre uma explicação para os fenómenos do mundo, era fascinante, muito tentador o percurso da sua vida.

De certo modo, a minha tia, por ser uma independente e jovem mulher, fazia-me querer ser como ela. Desejava por isso estudar em Lisboa, mas os meus pais achavam que, vivendo em Coimbra, uma cidade universitária, por excelência, não fazia sentido ir estudar para a capital. Fui sensível aos seus argumentos, também porque no ano em que me candidatei à Universidade, a minha tia ficou muito doente e nunca mais recuperou. E assim aconteceu: entrei no curso de Geografia na Universidade de Coimbra. E fui muito feliz durante o percurso na faculdade: o ambiente universitário foi único e inesquecível na minha vida e o calor estudantil era incrível, partilhado com colegas do meu ano de entrada na faculdade – eram sessões de estudo e debate noite dentro, mas também de verdadeira paródia académica. Ainda hoje, apesar de estarmos em diferentes pontos do país, nos encontramos com a regularidade possível e mantemos relações próximas.

O Planeamento vem a seguir a ter terminado a licenciatura. Que na verdade são duas: a Licenciatura em Geografia e a Licenciatura em Geografia, Ramo de Formação Educacional. A minha geração mobilizou-se para exigir que o nosso curso incluísse a formação educacional, como noutros cursos na área das ciências, e ganhamos esta luta. O que me “obrigou” a mais dois anos a estudar psicologia, ciências da educação e didática da geografia, e a fazer estágio numa escola secundária.

Estava eu já a começar a trabalhar no curso de Gestão e Desenvolvimento Social, da Universidade Católica Portuguesa, no polo de Viseu, levada pelo saudoso Professor Pereira de Oliveira, e uma Professora com quem, entretanto, tinha estabelecido uma excelente relação de amizade – Paula Santana, – convidou-me para fazer uma investigação sobre a “Alta de Coimbra” (que viria, em parceria, a ser a minha primeira publicação científica em 1987) e depois para a ajudar a executar uns trabalhos de planeamento: estudos prévios dos PDMs. Foi assim que tudo começou comigo no planeamento.

Entretanto, ainda fui chamada a uma entrevista em Setúbal para um lugar numa equipa de planeamento, mas não fui selecionada. Hoje estou certa de que foi o melhor que me aconteceu, porque uns meses depois abriu um concurso para o Departamento de Geografia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) e entrei.

Finalmente consegui um pretexto para vir para Lisboa. Mas devo dizer que foi muito difícil a minha adaptação. Afinal, a capital não era assim tão simpática para uma jovem que vinha da “província”. Um detalhe que recordo bem e que me impressionava muito na altura: a dimensão da FLUL, quando comparada com a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Mas, em Lisboa, estava o centro da geografia portuguesa, onde tinha o privilégio de conhecer o Professor Jorge Gaspar que, sem me dar conta de uma forma consciente, tinha sido muito marcante na minha formação, apesar de nunca ter sido sua aluna. Ao ponto do meu “seminário” final de licenciatura se ter intitulado “Área de influência de Águeda”, tal foi o fascínio que a leitura da sua inovadora tese de doutoramento exerceu em mim.

A geografia e o planeamento, e o ordenamento do território em Portugal são muito devedores ao Professor Jorge Gaspar. Ele “abriu portas” a muita gente, incluindo a mim. A convite do Professor Gaspar entrei para a equipa do PNPOT, e esse trajeto abriu outras possibilidades. Devo também deixar claro que se Lisboa significou um desafio, foi também onde conheci o Mário Vale, aquele que maior influência teria na minha vida pessoal e académica – ainda hoje escuto as suas ideias e opiniões com o rigor de militante; o convívio nos últimos 25 anos tem sido um desafio permanente e um privilégio de poucas.

P5. O que diria a um/a jovem que está a considerar seguir a área da Geografia ou Planeamento e Gestão do Território no ensino superior?

Diria o seguinte: quem se seduz pelos debates sobre as desigualdades urbanas e regionais e se revê na procura do desenvolvimento, a geografia, e sobretudo o planeamento, enquanto um empreendimento social que procura a justiça espacial, é a área do conhecimento certa. Entendo por isto que quem tem por preocupação a alteração da sociedade, ajudando a criar as condições que permitam o florescimento humano no respeito pelos valores e limites ambientais, e não por razões de benefício material das elites económicas e políticas, então o Planeamento e Gestão do Território e a Geografia, serão a opção evidente.

Entendo que o planeamento e a gestão do território têm um potencial transformador das estruturas dos sistemas, alterando as oportunidades individuais e coletivas, e pode estimular a aprendizagem contínua. Mais ainda, não deve ser uma atividade mecânica, baseada no que um conjunto de elites conceberam (normalmente “modelos”), apelidada de neutra e universal; ao contrário é uma atividade que promove trajetórias emergentes e transformadoras das pessoas no território, ciente das subjetividades e dos contextos reais e complexos, recusando a ontologia neopositivista.

Porque questões de poder estão na base dos impedimentos da melhoria da situação de pessoas e comunidades, acredito na importância do planeamento se constituir como forma de poder social, servindo para desenvolver e capacitar politicamente as pessoas mais pobres, desafortunadas, sem “voz”. E a pobreza a que me refiro não diz respeito apenas aos rendimentos, mas à falta de acesso a um número identificável de elementos na base do poder social (casa, autonomia, tempo para nós e os outros, conhecimento e capacidades, saúde, informação, etc.). Aprendi isto a ler John Friedmann, um dos maiores teóricos do planeamento dos nossos tempos e que mais me influenciou no sentido de pensar o planeamento enquanto uma relação conhecimento–ação, que não se resume à simples ideia de que a teoria alimenta a prática, porque o inverso também é verdadeiro.

Um último aspeto que é muito desafiante: o planeamento necessita do conhecimento de diversas disciplinas, pois delas também se alimenta e expande. Portanto, uma comunidade global de profissionais é vital para este campo do conhecimento, o que implica o cruzamento de teorias e metodologias, de visões e ambições muito diversas, as quais incorporamos para lidar com os desafios do mundo em que vivemos. Esta transdisciplinaridade é operacional em múltiplas escalas, da nossa casa ao mundo global.

P6. Na sua opinião, qual a contribuição da Geografia e do Planeamento e Ordenamento do Território para a compreensão do mundo atual?

Para obter uma resposta mais completa a esta pergunta, sugiro a leitura de algo que escrevi e foi publicado em 2016 na revista Planning Theory & Practice, “Edward Soja: geographical imaginations from the margins to the core”, 17:1, 154-160 (em acesso aberto). Neste pequeno manuscrito assente numa entrevista que fiz ao Professor Edward Soja (em 2013, em Los Angeles), um geógrafo humano crítico, destaco o seu argumento: o espaço é socialmente construído e, portanto, mais do que um palco, é essencial para qualquer compreensão da sociedade humana. Soja desenvolveu a análise espacial como uma abordagem maior dentro da teoria social, colocando o espaço no centro do pensamento crítico, algo que é tão importante para a geografia como para o planeamento territorial.

Creio que aquela é uma peça muito inspiradora, não por causa de quem a escreveu, mas pela riqueza intelectual dos argumentos da pessoa entrevistada. Naquele texto procurei sintetizar a nossa conversa (da qual extraí o material para escrever o artigo e ainda realizei um vídeo com o Professor Soja como protagonista, que até hoje apenas revelo nas minhas aulas) e a subsequente interação que tivemos sobre o seu trabalho. Nele procurei também mostrar como o seu percurso de vida é uma inspiração para quem estuda e trabalha em geografia e planeamento.

Suponho que a conversa que tivemos foi muito reveladora para a compreensão do mundo atual; mais ainda, coloca em evidência alguém que contribuiu inequivocamente com conceitos de geografia e planeamento e enriqueceu estes domínios do conhecimento-ação, sugerindo formas através das quais podemos desenvolver as nossas próprias reflexões. Assim, espero ter reforçado a questão da espacialidade da sociedade e a forma como as relações sociais se enredeiam com o espaço ao longo do tempo, tão relevante para o planeamento. Também ali destaco como o contexto em que desenvolvemos o nosso trabalho influencia o contributo para a ciência que produzimos – possibilitando-o ou restringindo-o.

Mas o objetivo final daquela peça é especificamente encorajar geógrafos/as e planeadores/as a abandonar os seus receios e tabus e se envolver com os novos desafios deste século, não apenas como seguidores/as, mas também como líderes intelectuais (como diria E. Soja). Espero através daquele texto inspirar jovens (das atuais e futuras gerações) que se iniciam na Geografia e/ou no Planeamento e que queiram enveredar por esta viagem permanente de aprendizagem que ambas as áreas do conhecimento possibilitam.

Por fim, ainda gostava de referir uma pessoa muito querida que nos últimos anos tem sido uma fonte de inspiração, a Professora Maria Dolors García Ramón que tão carinhosamente me acolheu na UAB durante a minha primeira licença sabática. As “lentes de género” são a sua imagem de marca. Quando as experimentei nunca mais as larguei. Quero com isto dizer que a dimensão de género fortalece a capacidade explicativa da ciência geográfica e do planeamento. Muito significativo para mim é um texto seu, de 1989, intitulado “Para no excluir del estudio a la mitad del género humano: um desafio pendiente em geografía humana”, publicado no Boletín de la Asociación de Geógrafos Españoles (nº9: 27-48).  Através daquele texto (e da imensa obra que, entretanto, produziu) alerta para a necessidade de olhar para as relações de poder desiguais entre homens e mulheres no espaço, naturalizadas através do patriarcado. Por outro, demonstra que uma sociedade mais justa terá certamente nas suas fundações relações mais igualitárias. Estes são assuntos que a geografia portuguesa e o planeamento ainda não discutiram suficientemente.